Quilombolas de Barrinha da Conceição festejam Nossa Senhora da Conceição

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A bandeira do rosário sai da igreja e percorre todas as casas
Márcia Guena

Com um estandarte na mão, esboçando a imagem de Nossa Senhora da Conceição, A Bandeira do Rosário, um grupo de um pouco mais de vinte moradores de Barrinha da Conceição entrou na primeira casa, depois de ter levado da igreja a imagem da padroeira. Uma caixa de som eletrificada, ligada a tomada, uma guitarra, um tambor, como um jembe curto,  e um pandeiro deram o tom da canção do divino que seria entoada em nome da santa, por muitas casas.
A espera era por um lamento, mas logo o ritmo do “samba de véio” saltou forte, acompanhado por palmas e de um hino mais do que animado:


Deus nos salve a casa santa
Onde mora o cálice bento
E a hóstia consagrada.

Entraremos, entraremos
Nessa casa de alegria
Onde mora o Bom Jesus
Filho da Virgem Maria

Aqui está Nossa Senhora
Ela veio lhe visitar

Lá vai o pombo voando
Por cima da laranjeira
Bate palma “dare” viva
Lá vai o rei da bandeira

Lá vai o pombo voando
No bico leva uma flor
Vai vando e vai dizendo
Viva o nosso imperador.

Oh que casinha bem feita
Toda caiada de vidro
More nela muitos anos
A mulher com seu marido

Oh que casinha bem feita
Enfeitada de papel
More nela muitos anos
O marido e a mulher.


O som logo encheu a sala, os pulmões e os corações, no dia mais importante da comunidade quilombola, localizada a 10 quilômetros do centro de Juazeiro, cidade localizada no extremo Norte do Estado da Bahia. Um ato de constrição embalado por um samba tão vibrante provocou um sentimento dúbio. Vontade de dançar freneticamente em meio aos gritos de Viva Virgem Maria! Viva Conceição! Logo a memória ancestral me veio, talvez tenha vindo para outros, não sei bem. A memória de uma festa, talvez a primeira festa de Barrinha, logo quando os negros que fugiam da guerra de Canudos encontraram ali um porto, um lugar, onde puderam descansar, beber e dançar essa música alegre.


A Bandeira do Rosário foi em frente, para a casa mais distante da comunidade. Atravessamos a cancela, passamos ao lado dos bodes, avistamos os bois e entramos: “Deus nos salve a casa santa!”. E tudo outra vez. E a procissão ia aumentando, com outros rostos que ocupavam as janelas, portas, sala, evocando o nome da santa. Uma imagem recuperada do afogamento, logo nos primeiros anos de fundação da comunidade. Esculpida em madeira, a imagem foi encontrada no fundo do Rio, como conta dona Roberta, a moradora mais velha da comunidade, com 84 anos. Sim, Dona Roberta estava lá. Chorando a cada lembrança, a cada passo, a cada casa que entrava. Seu filho, Gilberto, foi o fundador da igreja do local, na verdade, como contam todos, um grande ativista, que morreu muito cedo. Além da igreja, ele promovia as festas e sua imagem ainda está lá. A dor de dona Roberta não acaba. Parece que chora por todos os mortos e por todos que ainda vão morrer. É a guardiã do pranto. Esse que precisa existir para que ninguém esqueça: nem de Gilberto e nem de todos os outros quilombolas que morreram assim, sem muita explicação.

Gilvan, filho de Gilberto
“E lá vai passando a procissão...as pessoas que nela vão passando acreditam nas coisas lá do céu. As mulheres cantando, tiram versos, os homens escutando, tiram o chapéu”. Lembrei de Gil, Gilberto Gil. Ele deveria ter visto algo assim quando compôs essa canção. Os fogos estouraram no céu da caatinga. Tudo muito seco a uns poucos metros do Rio São Francisco. “E lá vai passando a procissão...”. Não tem água potável. Todos bebem a água do rio. Uns têm diarréia e outros ganham anticorpos. E nós fotografamos. Mas vamos voltar e ver se eles querem essas imagens e se elas fazem algum sentido. O que fazer com essa parafernália tecnológica diante da falta de água encanada, da terra seca, da falta de saneamento? Espero que a Nikon saiba fazer filtro e tubulação.

Outra casa, mais cantoria. E Gilvan mantém uma alegria que explode no rosto e no tambor. Não perde o compasso. É firme, enérgico, vibrante....Viva a Nossa Senhora da Conceição! Viva a toda a vida que ali se criou. Filho de Gilberto ele mantém a tradição da festa e quer para si e para seu irmão, que o acompanha no pandeiro, esse lugar. E nós também os queremos ali porque é verdadeiro. É forte, é um sentimento quilombola de pertencimento a essa cultura. E Larissa, a neta de dona Roberta também traz a mesma força e o mesmo deslumbramento diante da vida. Firme, destemida é a vice-presidente da Associação e não gosta de fotos: - Não me fotografem! Ela já sabe do poder da imagem, de fazer e desfazer. Queremos entregar esse poder a ela.

Todas as casas abriram a porta para a Bandeira do Rosário. Todas impecavelmente arrumadas e embaixo do vaso da sala, a esmola, que aguardava o fim da cantoria. Queria entender a letra, a lógica, o ritmo, os rostos, a solidariedade, a tradição.... tudo de uma só vez. Queria reconhecer em tudo aquilo a história da formação de um quilombo, queria de um só golpe ver e sentir tudo. O pranto que tomou conta de todos quando a casa de Gilberto foi visitada. Chorei sem entender muito bem.... Sorri, dancei, bati palmas, estendi os braços e recebi a bandeira do divino em minha cabeça ....Vivi aquilombada por algumas horas. Espero que se repita. Espero que eu entenda alguma coisa ou, pelo menos, continue vibrando nessa sintonia.




Os filhos de Gilberto, netos de dona Roberta
Juazeiro, 9 de dezembro de 2012, melhor que fosse 8. 


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Um comentário:

  1. massa! Eu e alguns Amigos fomos lá e achamos muitas coisas interessantes !

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