Monique Marques

As meninas de Tijuaçu - em seus vestidos brancos, sambando ao som vigoroso das batidas na lata, palmas e cantando rimas que revelavam-se relatos do cotidiano dos seus anciões - dão uma lição de identidade, respeito e continuidade a tradição. Bem ensaiadas - cantigas, giros, sorrisos - passam a impressão que já nasceram batendo o pé no chão e rodando suas saias.


A antiga comunidade de Lagarto, hoje denominada Comunidade Quilombola de Tijuaçu tornou-se conhecida por, entre outros fatores, manter vivo e forte seu tradicional Samba de Lata. Mulheres munidas de uma forte tradição transmitem seus ensinamentos às novas gerações, que prometem preservar a herança deixada por Mariinha Rodrigues.

Numa visita a comunidade, realizada no dia 24 de novembro de 2013 (domingo), fomos recepcionados pelas irmãs/ comadres, Maria Alice e Valdelice “Detinha”. Ambas com muito a dizer, iniciamos uma conversa envolvendo a história do lugar, o processo de certificação do território como quilombola, herança cultural, autorreconhecimento... Quando minha atenção foi roubada! Seis meninas apareceram tímidas na porta do local onde estávamos, entraram e quando direcionei a câmera para elas fui surpreendida com o sorriso e a pose de algumas contrastando com o olhar desconfiado de outras. Aos poucos, e agora sobre o foco de outras lentes, foram se soltando e, desconfio, adoraram protagonizar um verdadeiro ensaio fotográfico. 




Não bastasse a desenvoltura demonstrada por elas ao serem fotografadas, as pequenas quilombolas de Tijuaçu extravasaram talento ao sambarem lado a lado com outras duas gerações anteriores a sua.





Juliano Ferreira

Ilca dos Santos, 51 anos, é uma das lideranças da Comunidade Quilombola de Tijuaçu. Articuladora da Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências, ela nos revela os desafios de mobilizar as quatorze Comunidades em dias de reunião.
Foto: Augusto Jacksom
“Nós não temos nenhum meio de comunicação. Então, nós vamos passando de um para o outro. A gente entra em contato com duas ou três lideranças destas comunidades e elas retransmitem as demais pessoas, por celular ou já vai deixando agendado”, revela.
Tijuaçu é articulada em rede. Transpondo as barreiras impostas pelas limitações da escassez de instrumentos comunicacionais, as marcas da oralidade permeiam a organização e a militância local. Em 2003, o Samba de Lata se apresentou no Rio de Janeiro e conquistou o primeiro lugar em um evento de expressão nacional. “Temos feito apresentações em vários lugares do país, só basta nos convidar”, diz Valdelice da Silva, mais conhecida como Detinha do Samba de Lata.
Foto: Augusto Jacksom
“Temos mais de 60 lideranças se organizando em torno da associação que foi fundada em 2000 e a certificação de Tijuaçú, veio três meses depois. Agora, esperamos a titulação. Já recebemos a visita de técnicos do Incra (instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e de um antropólogo, estamos perto de conseguir”, revela.
“Está em construção agora uma escola quilombola e estamos lutando para termos professores da própria comunidade lá dentro, além de já termos o Creas (Centro de Referência em Assistência Social) quilombola. E ainda queremos conquistar mais”, finaliza.
 Juliano Ferreira

Tijuaçu é bastante conhecida em âmbito nacional enquanto comunidade quilombola. Mas eu confesso que desconhecia a riqueza e a densidade de seus valores, suas culturas, suas diversidades religiosas. Tudo assim mesmo. No plural. Desconhecia o vigor de seu povo. Uma sociedade marcadamente matrilinear. Onde as mulheres exercem forte influência enquanto líderes que conhecem e dialogam com o seu povo.

Minha relação com a comunidade era a de um passageiro que avistava, da BR 407, sua entrada. Nada mais. Esta visita, realizada por ocasião do projeto de pesquisa "Perfil fotoetnográfico das populações quilombolas da região do submédio São Francisco: Identidades em Movimento", me provocou a fazer algumas reflexões. 

A primeira delas, é uma marca primordial do exercício antropológico: Transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico, lição apreendida no ano de 2009, no primeiro período do curso de Jornalismo em Multimeios da UNEB.

O fascínio sobre os modos de vida da comunidade, o labor diário, observado em uma visita quase relâmpago de um dia, nos aproxima de múltiplas possibilidades e múltiplos olhares. A relação do tempero do almoço de meio-dia, me provocou a questionar as relações familiares. Um tempero, que parece, vai passando de geração em geração.

Ilca dos Santos, Valdelice da Silva, Maria Alice da Silva, Marinalva Santos Silva, Lindinalva do Nascimento Silva e todas as mulheres que conhecemos hoje, expressam fortaleza. Personificam a beleza da identidade quilombola em movimento.

Nunca o subtítulo deste projeto de pesquisa fez tanto sentido quanto hoje: Temos "Identidades em movimento". Identidades de Tijuaçu e das comunidades quilombolas circunvizinhas em movimento. Certamente, novos textos fluirão, a partir das impressões, do legado e da inspiração das mulheres quilombolas de Tijuaçu!
Márcia Guena

A comunidade quilombola de Tijuaçu, localizada no município de Senhor do Bonfim, na Bahia, está com o processo de titulação das terras bastante avançado, segundo informou hoje Ilka dos Santos, uma das principais lideranças da comunidade, dirigente da Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) iniciou o diálogo com os fazendeiros das redondezas e o processo de desapropriação, com pagamento das terras, está bastante adiantado, como afirmou Ilka. Elzinira dos Santos Costa, a Nira do samba de lata. Segundo ela a maioria dessas terras foram adquiridas por valores insignificantes dos primeiros moradores negros ou trocadas por remédios ou outras itens emergenciais que não poderiam ser adquiridas.

Além de Tijuaçu há cerca de 65 comunidades quilombolas em Senhor do Bonfim, 16 delas certificadas, de acordo com dados divulgados pela Fundação Palmares. Estas foram algumas das informações divulgados hoje por lideranças de Tijuaçu os integrantes do Projeto Perfil Fotoetonográfico das Populações Quilombolas do Submédio São Francisco: Identidades em Movimento, durante uma visita realizada hoje. Além de promover um debate sobre as comunidades quilombolas de Juazeiro, no dia 21 de novembro, o projeto visitou duas comunidades quilombolas já certificadas e com articulação cultural e política consolidadas: Lage dos Negros, em Campo Formoso, e Tijuaçu, em Senhor do Bonfim.

Equipe do projeto de pesquisa na igreja com mulheres de Tijuaçu. Foto: Juliano Ferreira

Juliano Ferreira
Localizada às margens da rodovia BR 407, a Comunidade Quilombola de Quebra Facão ao lado da Comunidade Quilombola de Tijuaçu, município de Senhor do Bonfim, norte da Bahia, carrega consigo marcas ancestrais da religiosidade de matrizes africanas.
Foto: Danilo Borges
Lindinalva do Nascimento Silva é da Umbanda, logo ao alto da parede de seu centro, é possível avistar o documento concedido pela Congregação Espírita Umbandista do Brasil. O título de Zeladora de Santo Nação Umbanda.
É no Terreiro de Umbanda Senhor Ogum de Ronda que ela voltou a atender há seis meses. Antes, passou um período em uma Igreja Protestante, mas não se identificou e sentiu a necessidade de voltar às suas raízes, segundo ela, a pedido de seu Santo.
Mãe Lindinalva é alegre, atenciosa, receptiva. Respondeu às diversas questões levantadas pelos membros do grupo de pesquisa “Perfil fotoetnográfico das populações quilombolas da região do submédio São Francisco: Identidades em Movimento” e conversou sobre seus guias, se propondo a abrir o seu terreiro em um Domingo. “Os dias que eu trabalho são segunda, terça e quarta aqui no Terreiro, na quinta, eu atendo através da minha guia, a cigana, em uma tenda montada dentro de minha casa”, ressalta.
Foto: Augusto Jacksom

“Os dias de sábado e domingo são os dias de descanso, mas ela [Lindinalva] não sabe dizer não”, ressalta Ilca dos Santos, uma das lideranças do Quilombo de Tijuaçú e que nos recepcionou em nossa chegada à comunidade.
Nossa visita a Quebra Facão terminou com ventania, o tempo fechado, culminando com chuva. Mais cedo, dona Ilca e suas irmãs, todas moradoras de Tijuaçú, faziam questão de enfatizar sempre a relação entre o dia quente e o prenúncio de chuva. “Todos os dias que fica assim, abafado, quente demais, pode esperar vai ter chuva, hoje mais tarde ou amanhã”.
E assim, Mãe Lindinalva abençoou a todos com seus guias. “Eu trabalho com uma aldeia inteira. Com a corrente das matas e a corrente das águas. Apesar das dificuldades, eu vou seguir a minha missão de fazer caridade”, finaliza.
Márcia Guena

As margens do Rio São Francisco que contornam a cidade de Juazeiro, localizada a 500 quilômetros da capital do Estado da Bahia, Salvador, abrigam cerca de 14 comunidades negro-indígenas, remanescentes de quilombos e de outras nações indígenas, que vivem nessas terras há mais de 200 anos. A maioria delas foi deslocada de suas áreas originais por projetos públicos ou privados, vinculados, principalmente, ao agronegócio e à construção de hidroelétricas. Sofrem com problemas estruturais básicos, como falta de saneamento básico, de transporte público e de assistência médica. E na região, banhada por um dos maiores rios do país, conhecida pelos grandes projetos de fruticultura irrigada, estas populações sofrem de um mal maior: falta de acesso a água para trabalhar e produzir. 

Entrada da comunidade do Alagadiço - Juazeiro- Bahia, em setembro de 2013


Esse é o quadro que se desenha no dia 20 de novembro de 2013, Dia da Consciência Negra, 25 anos após a Constituição Federal garantir em seu artigo 68  "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida à propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. E uma série de outros instrumentos legais, como o Programa Brasil Quilombola, garantir acesso a escola e a recursos para investimentos diversos. 

Por que essas comunidades não estão usufruindo desses direitos e vivem sem condições mínimas de cidadania? Certamente que as razões são as mesmas que acometem grande parte da população pobre rural desse país. Com um agravante: é um povo negro sobre o qual incide o racismo e a exclusão secular daqueles que buscaram fuga em lugares longínquos do país, como os sertões do São Francisco. De quilombolas passaram a ser invisíveis ao poder público e ao resto da sociedade. Ao poder público cabe a responsabilidade de esclarecer que os quilombolas têm direitos estabelecidos em um não tão novo marco legal. Certamente que aos povos negros moradores dessas terras cabe a luta de sempre, pela garantia desses mesmos direitos e pelo seu reconhecimento como herdeiros da cultura africana e de suas diversas traduções no Brasil. 

Não é fácil caminhar por estas terras e ver tanta exclusão. Ver o povo negro às margens do rio sem usufruir da água. De ver o verde na área irrigada pelos grandes projetos e a secura do outro lado da cerca, cerca essa que não existia. Água é como a terra: precisa ser distribuída. Ser quilombola na região do Vale do São Francisco é integrar uma grande luta pelo combate ao racismo ambiental, pela garantia do acesso à terra e pelo acesso à informação pública, no que se refere às leis que dão direitos a essa grande comunidade nego-indígena quilombola. Ao mesmo tempo é muito bom nosso povo às margens do rio: é samba de véio, é samba de lata, é riso bonito, é a memória viva que quer água - não só na cisterna, mas na plantação - computador, parabólica e reconhecimento.  
De acordo com seu site oficial, a Fundação Cultural Palmares (FCP), criada pela Lei nº 7.668, de 22 de agosto de 1988, tem por finalidade promover os valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira. 

Tem como missão institucional preservar, proteger e disseminar a cultura negra, visando à inclusão e ao desenvolvimento da população negra no país. No desempenho de sua missão institucional desenvolve ações que propiciem:

a) o estímulo, a valorização e o desenvolvimento da cultura e do patrimônio afro-brasileiro;

b) o desenvolvimento de ações de inclusão e sustentabilidade das comunidades remanescentes de quilombos;

c) a realização de pesquisas, estudos e levantamento de dados e informações sobre a população afrodescendente e, mais especificamente, sobre a cultura e o patrimônio afro-brasileiro.

Uma das funções da Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura é formalizar a existência das comunidades rurais quilombolas, assessorá-las juridicamente e desenvolver projetos, programas e políticas públicas de acesso à cidadania. Mais de 1.500 comunidades espalhadas pelo território nacional são certificadas pela Palmares.

Para acompanhar os processos das comunidades rurais quilombolas abertos, certificação, titulação e ter um amplo panorama da situação quilombola no país, basta consultar o hiperlink abaixo, com dados atualizados.