Barrinha da Conceição: A fé de um povo

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Ana Carla Nunes
Foto: Adeilton Júnior
Era uma tarde de domingo e já se aproximava das 15 horas. Aguardávamos o transporte no Canto de Tudo, no Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia, em Juazeiro. O grupo nesse dia foi composto por Marcia Guena, Ana Carla Nunes, Juliano Ferreira e Adeilton Júnior. Era a segunda vez que a comunidade de Barrinha da Conceição iria ser visitada.
Assim que o carro chegou seguimos para a localidade, às margens do rio São Francisco, que fica a aproximadamente de 15 minutos do centro de Juazeiro. Embora o sol estivesse evidente não era um dia muito quente, o clima estava agradável e nos fazia imaginar que a tarde igual.
Ao chegarmos o carro ficou estacionado na frente da casa de dona Roberta, a morada mais conhecida e influente da comunidade. A senhora estava sentada e quando nos viu levantou e foi ao nosso encontro. Com um sorriso largo no rosto nos recebeu e nos convidou para sentar e seguir com uma “prosa”.

Márcia se sentou à direita de dona Roberta, Juliano pegou a cadeira e ficou ao lado de Márcia, eu me posicionei em frente da senhora e Júnior ficou responsável por fazer o registro fotográfico durante a conversa. Muita simpática e com um sorriso no rosto Roberta Maria dos Santos Oliveira, ou Aiá como é chamada pelos familiares, contou um pouco sobre sua trajetória de vida, as lembranças da mocidade, a vida de casa, as lutas junto com a comunidade e as perdas que ainda marcam sua vida.
Roberta recordou como os primeiros moradores chegaram e as dificuldades que encontraram:

Meus pais são daqui mesmo, agora meus avós... meu avó mesmo disse que era da Guerra de Canudos. Ai eles saíram de lá e vieram, até que ficou aqui e daqui ele casou com uma moça de lá do Rodeadouro, que chamava Bazida, ele casou com ela e ai ficaram aqui... Como era, aqui não tinha casa, aqui tudo era jurema, não tinha negócio de terra não. Eles vieram fugidos da Guerra de Canudos, vieram correndo, ele não veio sozinho não né, porque pra sair correndo de lá acho que não vieram sozinho. Porque eu acho que teve gente mais que.. esta imagem que tem aqui que a Virgem de Nossa Senhora da Conceição ela é achada das meninas né. Já foi assim com meu avô e minhas tias era tudo menina e aqui era só favela e quando fala no tempo da favela ai diz que elas saiam com os pauzinho e iam com as latinhas pra tirar favela (planta característica do local). (Entrevista dia 10 de junho de 2012 com o grupo de pesquisa.) 



A comunidade de Barrinha da Conceição recebeu esse nome em homenagem a padroeira da localidade, Nossa Senhora da Conceição. Os festejos acontecem no mês de dezembro e os moradores realizam uma bela comemoração, onde grande parte dos ribeirinhos são devotos da santa e acompanham a celebração.

Eu sei que essa imagem, a imagem que ta ai, foi a... foi este povo que vieram correndo e fizeram uma casa, até de tijolo assado, isto ai eu me lembro. Ai elas brincando e tirando favela diz que iam sair e, quando chegaram lá, nesta casa, eles já tinham vindo embora e deixaram a imagem. Ai ela, quando chegaram lá dentro da casa, os porcos fizeram aquele buracão pra dormi e ela (imagem da santa) no meio, num “nincho”, que ainda hoje o “nincho” ainda tá ai era de pau. Sim com a imagem. Ai elas vieram dizer as “véias”, ai as “veias” disseram: “Vamos olhar, se for mentira de vocês cada um já levava um cipó pra bater nelas.” Porque elas andavam mentindo, ai quando chegou lá, que elas entraram tava a imagem mesmo. Daí minha avó, junto com as outras, pegaram e trouxeram pra cá, daí as outras velhas disseram: “Oh Bazida, agora você fique com a imagem, porque nós não vamos ficar.” As casinhas tudo pequena, de barro, só a da minha avó que era grande de barro também, tampada de palha. Ai ela ficou com a imagem, mas era dentro do quarto dela, num tinha reza, não tinha nada. Ai eles foram, ai teve uma vizinha também que morava lá pra baixo, ela já morava distante de nós, ai disse caiu, agora eu não sei se foi um dos filhos dela, homem ou mulher, que caiu doente, daí ela fez a promessa com Nossa Senhora da Conceição, daí a menina ficou, ficou bom. Daí ela veio e falou, falou com ela se ela dava a imagem pra rezar a novena lá na casa dela ou se ela aceitava a casa. Essa casa era de primeira, ela toda cismada ai disse: “Não comadre, a senhora vem fazer a novena aqui. Junta as meninas, as que canta novena e vem rezar aqui.” Ai como vieram, quando terminaram as nove noites, ai minha avó gostou muito né, daí ficaram continuando, mas dentro de casa, dentro de casa. (Entrevista dia 10 de junho de 2012 com o grupo de pesquisa) 

Entre uma pergunta e outra a simpática senhora se mostrava muito à vontade, alguns de seus filhos e netos acompanharam a entrevistas, estávamos sentados na porta de sua casa, parecíamos velhos conhecidos. Gargalhas e brincadeiras para deixar as pessoas mais desprendidas e soltas eram realizadas a todo o momento. O remanescente quilombola, por muito tempo, guardou muito da cultura que os mais velhos tinham deixado como o Samba de Véio, alguns rituais de candomblé, roda de São Gonçalo entre outras tradições que ao longo do tempo foram sendo esquecidas.

Aiá cantou um pedacinho de um samba que dançava em sua mocidade 


Foto: Adeilton Júnior


Oh deixa eu Maria, oh deixa eu sambar

Vou me embora, vou me embora

Porque já disse que vou,

Eu Maria, oh deixa eu sambar

Se você for eu não ia, mas como sou cativa eu vou

Eu Maria, oh deixa eu sambar

Maria oh Maria que te ensinou a sambar

Eu Maria, oh deixa eu sambar

Foi o tombo do navio, foi o balanço do mar

(Entrevista do dia 10 de junho de 2012 com o grupo de pesquisa)


Em alguns momentos Roberta se lembrava de coisas que a emocionavam, como ao falar de seus pais e de seus filhos. Não chegou a conhecer sua mãe, que morreu no parto, casou-se e só conviveu com o marido, que morreu de epilepsia, durante 10 anos. O que mais causa sofrimento para a aposentada, é lembrar dos seus filhos que morreram, entre eles Gilberto, que era missionário e morreu de parada cardíaca quando veio a Juazeiro. Durante a festa da padroeira, em dezembro, é o momento que mais traz lembranças. Gilberto era a liderança religiosa não só de Barrinha da Conceição, mas de outras comunidades quilombolas da região, era tido como quase um padre.
Em meio a tantas recordações Aiá preferiu contar um pouco mais sobre as rodas ou sambas que antes eram freqüentes na localidade.

É era assim como, era como nas novenas que nesse tempo não tinha negócio de toque não, o povo não era muito, era uns toquinho véio de violão, essas forra de violão. (risos) Ai as meninas ajuntava as daqui, as de lá da ilha que vinham tudo e ai nós fazia, não tinha luz, nós pegava e ai fazer era corta, quebrar lenha. Fazia as fogueiras, quando era de noite, terminava as novenas ai a gente fazia aqueles fogueironas de lenha e ai ia dançar roda. (Entrevista do dia 10 de junho de 2012)

Aproveitou as lembranças sobre as danças e voltou a cantar

Amarra o boi Maria, amarra o boi Iaiá

Oh Maria amarra esse boi, oh na porteira do curral

Oh Maria, amarra o boi Iaiá

Menino você não sabe que eu já to pra te deixar

Amarra o boi Maria, amarra o boi Iaiá

Quando na roça bota o cravo e a roça e a outra deu na fresta

Oh Maria, amarra o boi Iaiá

Menino oh meu menino de coração de pedra dura

Oh Maria, amarra o boi Iaiá

Se tu não tiver cachaça me dá mesmo a rapadura

Oh Maria, amarra o boi Iaiá

Vocês me verem cantando pensava que eu estou alegre

Oh Maria, amarra o boi Iaiá

Meu coração esta preto só pinta o que vocês quer

(Entrevista do dia 10 de junho de 2012 com o grupo de pesquisa)


A conversa ia se prolongando e à medida que perguntávamos sobre os costumes e as religiosidades que fervilhavam na comunidade, Roberta ia contando e lembrando com saudosismo cada detalhe que, embora tenha idade avançada, falava com riqueza. Ao falar sobre os terreiros de caboclos falou um pouco como eram organizados os preparativos.


Foto: Ana Carla Nunes
Fazia a mesa e ai botava as flores na mesa, botava o santo, o quadro do santo, botava na mesa e as velas acendia e ai primeiro rezava né. Pedia a prece pra gente, pra Jesus livra, pra defender das horas más e depois quando acabava as preces eles abriam o terreiro, cantando. A gente batia palma e às vezes cantava assim:

Eu atirei, eu atirei e ninguém viu

Eu atirei, eu atirei e ninguém viu

Só Sete Flecha é quem sabe onde a flecha caiu

Só Sete Flecha é quem sabe onde a flecha caiu

(Entrevista do dia 10 de junho de 2012 com o grupo de pesquisa)

Embora dona Roberta estivesse se recuperando de um mal estar cantou muito, as músicas eram as lembranças mais fortes que tinha se sua infância e mocidade. As melodias embalavam quase todos os rituais, sejam eles danças, celebrações, rodas e outros costumes que ali eram presentes.

Aldeia, aldeia... oximaré

Aldeia, todas as aldeias, aldeia oximaré

Aldeia, aldeia... oximaré

Aldeia, todos os caboclos, aldeia oximaré

Aldeia, aldeia... oximaré

Aldeia, seu Juremera, aldeia oximaré

Aldeia, aldeia... oximaré

Aldeia, seu vencedor, aldeia oximaré

Aldeia, aldeia... oximaré

Aldeia seu Joaquitino, aldeia oximaré

Aldeia, aldeia... oximaré

Aldeia, seu vencedor, aldeia oximaré

(Entrevista do dia 10 de junho de 2012 com o grupo de pesquisa)

Em outra entrevista realizada também pelos colaboradores do projeto de pesquisa, Aiá mostrou o que lhe trazia felicidade e o que esperava da vida

A família que construí. Meus filhos, minhas noras e meus netos. E a maioria mora comigo aqui na Barrinha, eu ganhei esse terreno todo de herança de meu pai, aí um neto vai casando aí eu digo: - Faça sua casa. Vai casando uma neta aí digo: - Faça sua casa. Quando eu morrer num vô levar né?! Tenho o sonho de ver a comunidade se unir tudo e nós fazer um jeito de levantar a igreja. Fazer uma coisa mais descente, que quando Deus me chamar vai dizer assim: - Ói, a véia tava no meio, ajudou. Esse é meu sonho. (Entrevista de janeiro de 2013 com Adeilton Júnior e Raryana Wenethya)

As horas iam passando e nem percebemos, a conversa foi prazerosa e nos fez passear pelas memórias e tradições de Barrinha da Conceição. Roberta ou Aiá passou por muitas dificuldades na vida, no entanto não esmoreceu tão pouco fraquejou. É adorada por todos seus familiares, é a “mãezona” dos netos, sobrinhos, genros e demais parentes. Nos levou ainda na casa de uma de suas netas, nos mostrou a comunidade, onde eram as casas dos filhos, sobrinhos, onde ficava a capela e apontou onde ficava o rio.
Depois daquela conversa que leva-nos para um lugar onde não temos conhecimento e nos faz imaginar tantas coisas fomos revigorar as energias no rio. No caminho passamos por uma ponte onde passava um córrego. O sol já estava a se pôr, era tudo o que precisávamos. Com aquela imagem do sol se pondo, o céu alaranjado, depois de uma conversa rica de sentimentos e memórias o dia de domingo foi pintado do modo mais belo e sutil. Passamos alguns minutos naquele cenário, tudo precisava ficar bem guardado em nossas memórias.
Na volta passamos pela casa de Roberta a agradecemos, com um sorriso no rosto disse que quem agradecia era ela e nos convidou para seu aniversário no final do mês. A gentileza e a espontaneidade nos deixaram fascinados. Dissemos não um “Adeus”, mas sim um “Até breve”. A real vontade era ficar mais um tempo ali escutando as belas histórias daquela pequena localidade, no entanto tivemos que retornar. No caminho de volta, a olhar a paisagem que passava rapidamente, o sorriso e a alegria de Aiá eram as imagens que ficavam gravadas em nossas mentes.


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