Do antigo ao atual Quipá

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 Ana Carla Nunes
 
Foto: Ana Carla Nunes
Era uma manhã chuvosa em Juazeiro, estava diferente, geralmente os dias são sempre quentes, e fomos a caminho da comunidade quilombola de Quipá. Não sabíamos ao certo o que nos esperava, era um lugar até então desconhecido. Antes de realizarmos as saídas, pesquisamos sobre os locais onde as visitas serão realizadas, e dessa vez não foi diferente. Tínhamos informações prévias, como: que a localidade era banhada pelo rio São Francisco; que eles tinha um tipo de “ilha particular”, já que podiam realizar a travessia facilmente; que tem como principal fonte de renda, não diferente das demais comunidades ribeirinhas, é a pesca e agricultura; entre outras.

Roteiro de entrevista, gravadores e máquinas fotográficas já estavam todos preparados, era só esperar chegar até o local. Pouco mais de 15 quilômetros do centro de Juazeiro, uma média de 20 minutos até chegar ao Quipá. Tudo era novo, diferente. A escola logo no centro da comunidade e as casas ficavam ao seu redor, um venda (pequena loja) foi nossa primeira parada, lá procuramos saber quem eram os moradores mais antigos e quem poderia contar um pouco sobre a história local.

Conversamos primeiro com o pescador Edmilson que nos informou que quem saberia com riqueza de detalhes sobre as memórias do Novo Quipá eram os senhores Tonico e Zé Domingos, como são chamados Antônio Cândido de Brito e José Domingos de Brito, respectivamente. Assim segui para aquela que seria a minha primeira entrevista do dia junto com Juliano. Edmilson, gentilmente, nos levou até a casa de Zé Domingos. O terreno em que está a casa dele é grande, ele cultiva verduras, planta milho e feijão, além de também criar bodes e porcos.

Agradecemos a Edmilson por nos levar até lá e fomos ao encontro de Zé Domingos. O chamamos em frente a cerca que dá a volta em sua propriedade e sua esposa veio nos receber. Dina, como é chamada carinhosamente pelo marido, o chamou para que viesse conversar conosco. Zé Domingos nos cumprimentou e convidou para sentar, assim ficaríamos mais a vontade. Sua esposa foi pegar as cadeiras e ali mesmo nos acomodamos, na porta da casa, em frente ao terreiro sentamos.

O “seu Zé” mora na comunidade do Quipá desde sempre, conta que nunca saiu de lá, tem uma casa no centro da cidade de Juazeiro que vai algumas vezes, mas prefere sua casinha ali na comunidade. Lembrou que há alguns anos a localidade mudou de local, as pessoas tiveram que deixar suas terras no Antigo Quipá, como é chamado atualmente, hoje moram nas terras para as quais foram relocados.

O Quipá não era habituado aqui nesse local, era Quipá também, por isso não tinha diferença. Era Quipá a mesma coisa aqui. Agora o lugar que eles morava era ali, por exemplo, bem ali num sabe.. encostadinho na cerca. Era mais ou menos assim, venderam as terras e nós mudamos pra aqui, e por sinal que nós era morador tão antigo que não era apropriada por causa da data. Era antiga mesmo do tempo de nossos avó, o pessoal era muito mais velho. Ai a dona chegou e vendeu a parte das terras, e não comunicou nada pra ninguém, e quando pensa que não chegaram ai uns empresários, os empresários chegaram e compraram tudo, colocaram o pessoal tudo pra fora. (Entrevista dia 23 de maio de 2012, com o grupo de pesquisa)

 
Foto: Ana Carla Nunes
Ele conta que o processo pelo qual passaram foi muito intenso, a luta pela posse de terra na comunidade durou algum tempo e teve o envolvimento de muitas pessoas. O antigo local era maior, mais espaçoso, todos os moradores conseguiam desenvolver bem suas atividades, mas depois da venda de lote de terra, a comunidade se viu sem suas terras e casas.

Quem ficou a frente das lutas pela retomada das terras foi Zé Domingos e Tonico, outro morador da comunidade. Eles se organizaram e foram em busca de advogados que pudessem os auxiliar nessa questão. O que conseguiram foi mais um lote de terra próximo ao antigo local que moravam, um terreno reduzido em relação ao antigo, mas foi ali que a comunidade se firmou.

Ai era pra indenizar todo mundo que não podia sair, que não tinha terra, não tinha pra onde ir e não podia ficar lá. Ai fomos pra justiça, a justiça deu todo direito pra nós, que nós não saísse de lá que lá era nosso. Mas devido ao tempo e eles se apertaram muito na agressão ao pessoal, o pessoal se entenderam e terminaram saindo e pro resto da história que ficou por verdade fui eu e minha mulher pra conta a verdade. (Entrevista dia 23 de maio de 2012, com o grupo de pesquisa)

A fonte de rende era a agricultura, isso prejudicou muito a produção, já que, as plantações ficavam nos terrenos antigos e dessa forma boa parte das produções foi perdida com a troca de locais.

É as coisinhas mesmo, assim.. de plantar era feijão arroz, oh.. feijão, milho, abóbora, essas coisas assim sabe?! De beira de rio, nessas margens de rio ai, antigamente essas margens de rio era pra frente não era?! Tinha muitas coisas, não tinha problema, não tinha nada a gente se valia dessas terras do rio mesmo, a gente tinha essas mesmas coisas, quer dizer naquele tempo a gente tinha mais um pouquinho... Ai assim vai, assim vai e o juiz de direito falou: “Já tem a casa? Tem”, ai depois disse: “Não a casa não precisa não. Segura a chuva e o sol?”, eu disse: “Perfeitamente!”, pois é uma casa, registrou e colocou lá. Quando acabou o final da história, da questão e tudo lá, aí o juiz de direito deu a permissão “Lá é dele!”, de lá eles não saem, de lá do Quipá Velho num sabe?! È de lá do Quipá Velho, é de lá do Quipá Velho, lá é dele e de lá ele não sai, só se indenizar o rapaz. (Entrevista dia 23 de maio de 2012, com o grupo de pesquisa)

E a indenização não veio, e o senhor Zé Domingos continuava no local, e sempre buscando os seus direitos e o que era melhor para os moradores locais. Ele sabia que não poderia ser retirado do local onde seus bisavós, avós, pais e filhos nasceram e cresceram, tinha muita coisa que não o deixava ir embora, inclusive o direito em permanecer no local que sempre viveram. Eles sabiam que não podiam deixar o local se tinham as terras, os outros moradores não tinham a dimensão desse problema, achavam que a proposta feito pelo empresário que comprou alguns lotes de terra a melhor: ganhar uma casa ou um pequeno “pedaço de terra” em troca do local em que estavam.

Ele ia dá 70 pra nós sai, vendeu os carros, as casas, eu peguei uma casinha lá fora, lá naquele canto de lá. Ai fizemos, e quando é daqui a pouco eles chegaram, no fim da tarde, agora eu quero que vocês se mudem, vamos precisar dessa casa que nós vamos ver um lugar. Tudo bem doutor, mas eu tava com um assunto que ele nem analisava o que ia acontecer ainda, “eu vou sair daqui, mas só vou com meus direitos, com o principal que é o documento assegurado no cartório, como vocês deram assinado, o documento.” Ah rapaz quando eles chegaram: “Seu Domingos, não saiu porque?”. Eu disse: “Oh doutor, faltou alguns detalhes...” “O que seu Domingos?” Rapaz o seguinte é esse, porque vocês num colocaram aqui o pessoal todinho pra fora, pra cá?! Sem direito a nada e eu.. e o senhor quer despejar eu pra fora sem direito a nada, o senhor não vai dar direito a nada, e quer mandar a gente pra um lugar nova, esse onde a gente ta aqui agora, amanhã ou depois o senhor me chuta. E ai, eu vou ficar como? Porque eu não tenho direito a nada, aqui não conta nada, meus direitos é aqui dentro, doutor eu só saiu daqui se for o preto no branco, assinado e registrado no cartório, como vocês deram de boca. Seu Domingos, não carece isso não. Claro que carece doutor! O senhor ta vendo o negócio aqui... Tem que fazer negócio certo, não é não?! Ai rapaz, ele coçou a cabeça, o doutor, o dono da firma né?! Ficou ali, ficou, ficou, é então vamos distribui a área, bota tudo pros outros assina aqui. Eu quero tudo no meu nome só que a luta foi grande, a batalha foi forte, foi pra eu sozinho e pra “véia” aqui, então eu quero pra meu nome essa área aqui. (Entrevista dia 23 de maio de 2012, com o grupo de pesquisa)

Ao relembrar dessas histórias ele apontava com o dedo para direção onde seriam as antigas terras, lembrou que boa parte delas dava acesso ao rio. Hoje boa parte do terreno que é na beira do rio é de propriedade particular. O morador mostrou ainda a sua plantação e os animais que cria, depois de muito esforço na busca pelo seu terreno, conseguiu manter sua produção agrícola. 
Com o passar do tempo, alguns moradores foram percebendo que não tinham feito um bom “negócio”, pois as terras que receberam não condiziam ao que tinham anteriormente, era inferior. O que também colaborou para que algumas pessoas migrassem para a localidade, foi a possibilidade de trabalhar com a agricultura no terreno no Antigo Quipá.

Mas, mas, mas escute bem, veja bem, ai quando foi com o passar do tempo, o pessoal surgiu muito emprego, muita coisa aqui pra cá, pegando gente e espalhou pra todo canto aqui, tudo aculá, porque a empresa não dá nada a ninguém né?! Dão emprego pra trabalhar, mas coisas pra fazer sua casa não dão ai queria fazer tudo aqui, eu sei que através de amizade de coleguinha, quando eles vem, vem tudo alegre, tudo bonitinho sem saber, vem dando uma de bom. Sei que rapaz, acumulou foi gente ai né, hoje tem gente ai que ta chorando, só tem a casa de morar, no lugar não pode nem criar uma galinha porque o pessoal encostou por fora e não tem mais como eles “estribucharem”. Eu não, eu nunca dei permissão, eu pelo menos contei a verdade, disse: “Oh, aqui é passado assim, eu passei pra eles, os cuidados que eles me deram, eu passei tudo pra eles, pra já não deixarem ninguém encostar, cada quem no seu local.” E assim eu fiz, peguei minhas arreazinhas de terra que tinha, meu “véio” pai morava ali, ai vocês vêem aqui tem esse roça que era particular eu fui e comprei, era de um parente de minha mulher. (Entrevista dia 23 de maio de 2012, com o grupo de pesquisa)
 
Foto: Ana Carla Nunes
Em meio as discussões sobre a luta pela posse de terra, Juliano o perguntou se tinha alguma lembrança que fazia menção se o local tinha sido formado por negros, ex escravos. Zé Domingos ficou na dúvida, mas lembrou de uma represa que fica próximo de onde estávamos, e nos falou que seus avós contavam que o local tinha sido construído por negros. Contou que as paredes eram gigantescas e não consegue entender como homens carregavam aquelas imensas pedras, já que a represa está em um local relativamente alto.

Eles falaram que foi construído isso daí através dos negros naquela época não é. Foi os negros foi quem fez, um negócio muito invocado mesmo, fizeram pra tomar o peixe, uma Tapai com uns portão assim, tem nenhuma porta e quando enchia bem entrava lá, na frente tinha uma lagoa maior ainda, enchia tudo de água, ai a água só passava naquele portão ali, tem uns dois ou três sabe. Tem um que chamava o portão grande bem largo o outro era pequeno. Tem lugar mais velho que isso aqui, tem lugar lá no portão grande lá no final no centro que é mais alto que isso aqui. É obrigado somos as guia pra ajeitar o negócio lá em baixo, porque é muito fundo não é. E era certinha assim que nem essa parede, que era pedra solta num sabe. E de longe, era longe, fazia canto com aquela roça assim, e era assim que fazia a cerca de canto, era tudo bem amarrado, tudo bem feito era muita coisa não era. E ainda hoje, ainda hoje tem lá os sinais lá, é interessante. Ai ouvia meus pais dizer que foi feito pelos negros naquela época não é da Tapai. A única coisa que eu tenho que lhe dizer é essa, que eu to lembrando.  (Entrevista dia 23 de maio de 2012, com o grupo de pesquisa)

Zé Domingos nos recebeu com muita gentileza, contou as histórias que mantêm vivas em suas memórias. Sua família, os filhos e as esposas, passaram pelas dificuldades que envolvem a luta pela posse de terra junto a ele. Os filhos, ainda eram crianças quando tudo isso aconteceu, todos viveram momentos difíceis, foram ameaçados e expulsos dos terrenos que lhes era de direito. Da mesma forma, os moradores que buscaram seus direitos, assim como Zé Domingos, conseguiram reaver ao menos um terreno para que reerguessem suas casas.

Zé, como Dina o chama, não se deixou abater mesmo depois de passar por todos esses problemas. Ao fim da entrevistas nos mostrou o seu pedaço de terra com o maior orgulho, todo satisfeito em ter consegui plantar milho e feijão, e ainda tem o privilégio de ter em sua propriedade acesso ao rio. Com toda a atenção nos levou até e mostrou a Ilha do Quipá logo a frente, onde mais tarde iríamos visitar.

Nos despedimos do simpático casal e voltamos para encontrar os outros membros da pesquisa. Durante nossa caminhada, Juliano e eu trocávamos as impressões e sensações que tínhamos acabado de ter, sem nenhuma dúvida o que mais nos chamou e despertou a atenção foi a disponibilidade e disposição deles.  A cada visita saímos mais revigorados e renovados, as histórias que escutamos durantes aqueles minutos, nos remeteu a uma outra dimensão, a dimensão do Antigo Quipá.


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